No Bom Futuro, distrito de Ariquemes, não havia parquinho, nem praça, nem muitas distrações. Mas havia chão batido, quintal grande, imaginação fértil e um caderno sempre por perto. Foi ali que Maria Gabriela aprendeu a criar os próprios caminhos. Aos nove anos, ainda sem saber direito o que era engenharia, respondeu a uma professora que queria ser administradora de empresas. A resposta veio afiada: “Sonhe alto, não custa caro!”.
Anos depois, ela entraria em um canteiro de obras com um capacete branco e um diploma de engenheira civil na mochila — a primeira da sua família, a primeira nascida em Bom Futuro e tendo a sua formação toda realizada na Escola Municipal Padre Ângelo Spadari. Uma exceção gritante no mapa desigual da educação no norte do país.
A escola onde tudo começou não foi construída por acaso. A Padre Ângelo Spadari nasceu nos anos 1990 como resposta direta à exploração do trabalho infantil no garimpo local. Parte de um projeto pioneiro - Erradicação do Trabalho Infantil em Bom Futuro - que envolveu a Prefeitura de Ariquemes, Ministério Público, empresas privadas, garimpeiros e o geólogo Renato Muzzolon. O objetivo era simples no papel e revolucionário na prática: tirar as crianças do garimpo e colocá-las na sala de aula.
Gabriela foi uma dessas crianças. “A escola era segura, limpa e tinha bons professores, mas faltava lazer. A diversão a gente inventava em casa. Mesmo assim, o mais importante foi o que ela representava: a possibilidade de estudar e ser criança”.
O nome do distrito - Bom Futuro - soava, até então, mais como um desejo que como uma descrição. Mas aos poucos, para algumas famílias, esse futuro começou a tomar forma.
Já em Curitiba, no clima frio e na paisagem cinza da capital paranaense, Gabriela enfrentou o baque da distância. “Foi difícil. A saudade da família, o choque cultural. Mas entendi que era uma etapa necessária. Aprendi a lidar com a solidão e aproveitar as oportunidades”.
Ela só aguentou por que a semente dessa travessia foi plantada bem antes - e em solo conhecido. Ainda criança, viu o pai chegar em casa com plantas de engenharia nas mãos. Ele trabalhava na construção de um britador no próprio Bom Futuro e passava horas tentando decifrar os desenhos técnicos, espalhados pela mesa. Um dia, levou Gabriela até a obra. Lá, o engenheiro responsável olhou para a menina, sério e divertido, e soltou: “Essa aí vai ser engenheira!”.
A frase ficou. Como uma profecia sem pressa, foi ganhando forma com o tempo. “Comecei a pesquisar, entender mais sobre a profissão e gostar da ideia. Desde então, fui traçando meu caminho para tornar esse sonho realidade”.
Entre aulas, estágios e o Programa de Iniciação Científica do CNPq, ela foi descobrindo afinidades técnicas e desejos sociais. “Quero trabalhar com recursos hídricos, com drenagem urbana. Planejamento de águas pluviais pode não parecer emocionante, mas muda vidas”.
Nos estágios em construtoras, enfrentou o machismo estrutural do setor. “Acompanhei mais de 20 obras de alto padrão em Curitiba e nenhuma tinha uma mulher como gerente de obra. Ainda somos minoria em cargos de liderança na engenharia.” Não que isso a intimide. “A gente se impõe pelo trabalho, pela competência. E isso ninguém tira de nós”.
De volta a Ariquemes, ainda que só nas férias, ela sonha alto — como aquela professora aconselhou. “Quero levar o Projeto Despertando Sonhos para o Bom Futuro. Mostrar às meninas da escola que elas podem ser o que quiserem. Que é possível sair, estudar, voltar e transformar”.
Quando perguntada sobre suas inspirações, ela cita colegas, professores e líderes que encontrou no caminho. Porém, guarda um carinho especial por seu padrinho, Renato Muzzolon — o mesmo que, décadas antes, ajudou a criar a escola que mudaria sua vida.
Gabriela sabe que sua trajetória não é comum. “A educação ainda é privilégio para poucos. Isso precisa mudar.” Ela diz isso sem arrogância, sem retórica. Só com a firmeza de quem segurou uma planta de obra ainda criança e ouviu, de um engenheiro: “Essa aí vai ser engenheira!”.
Foi.